Ao entrar na faculdade, o presidente da
CUT revê e
atualiza o modelo de líder de que Lula foi pioneiro
Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho da CUT, entrou na
faculdade. Eis uma notícia de alto significado. Vicentinho concluiu o curso
médio em julho, pelo Telecurso 2º Grau. Neste fim de ano, prestou vestibular
para direito em quatro faculdades paulistas. Na semana passada, saíram os
resultados de duas, da Universidade Bandeirante, Uniban, e da Universidade São
Marcos, e ele estava entre os aprovados. Aos 42 anos, o líder da CUT começa a
virar doutor e a promoção não é só dele — é do tipo que representa. Vicentinho
está percorrendo um caminho que a seu mais ilustre antecessor na mesma família
política e sindical, Luís Inácio Lula da Silva, não seria permitido. Lula
poderia ser até presidente da República, e quase foi, mas advogado não. Se não,
vejamos.
Qual a originalidade de Lula? A resposta mais óbvia é:
a do metalúrgico na política. Foi a credencial com que despontou no cenário
brasileiro, sua vantagem, seu algo mais, o trunfo singular que trazia na manga,
mas também sua desvantagem, sua camisa-de-força, seu problema. Pois, para
manter a originalidade, e portanto o tipo de liderança que representava e o
horizonte político para o qual apontava, precisava manter-se metalúrgico. Não
que lhe fosse exigido exercer a profissão, mesmo porque, se continuasse dando
duro no torno mecânico, não teria tempo nem disposição para outra coisa. Mas,
essencialmente, intrinsecamente, precisava manter-se metalúrgico e, tanto
quanto possível, manter os sinais exteriores do metalúrgico. Com isso, chegamos
a uma resposta mais completa com relação à pergunta sobre sua originalidade.
Lula não é apenas o metalúrgico na política. É alguém que, na política, se
cristalizou em metalúrgico.
A condição de Lula é conseqüência da novidade que
representaram, quando surgiram em cena, ele e os companheiros sindicalistas que
formaram a primeira geração do PT. Não é que, na política brasileira,
operários, ou pessoas de origem nos baixos estratos da sociedade, de forma
geral, nunca tivessem ascendido a posições relevantes. Há muitos casos de
pessoas de origem modesta, no passado e no presente, bem-sucedidas na vida
pública. Para citar um único, Leonel Brizola teve apenas um par de sapatos na
infância, exerceu ofícios como o de engraxate e só foi escovar os dentes pela
primeira vez aos 12 anos. O Brasil é um país em que, paradoxalmente, convivem a
rigidez hierárquica e a mobilidade social. Machado de Assis, maior glória das
letras nacionais, era filho de lavadeira e de pintor de paredes.
Há, porém, uma diferença fundamental entre os casos
que ocorrem habitualmente no país e o de Lula e seus similares da época de
constituição do PT. O que ocorre habitualmente é que a promoção de uma pessoa
ao primeiro plano, seja na política, seja em outro ramo, é precedida por um
projeto de ascensão social, ou coincide com ele. Brizola, contra toda a lógica
que rege a vida de um menino como ele, decidiu estudar e esforçou-se nesse
caminho até se formar engenheiro. Quando ingressou na política, já galgara o
patamar social que o anel de doutor proporciona. Muitos percorreram trajetória
semelhante. Outros foram ascendendo socialmente enquanto, ao mesmo tempo, por
meios lícitos ou ilícitos, faziam a carreira política. A inovação que Lula e
seus companheiros traziam era de primeira ordem: tratava-se de pessoas que
despontavam para a política sem ter realizado previamente, nem ter o plano de
realizar simultaneamente, um projeto de ascensão social. Daí a cristalização de
Lula em metalúrgico. Sem ela, ele estaria negando a singularidade por
excelência de seu surgimento na cena nacional. Vale dizer, estaria negando a si
próprio.
Ora, pode-se alegar, Lula vive hoje numa casa muito
melhor, comprou apartamento, tem carro e, ultimamente, apresenta-se em ternos
bem cortados. Certo, mas são mudanças realizadas tão discretamente, e de
maneira tão gradativa, quanto uma operação plástica feita em segredo e, para
passar o mais despercebida possível, em etapas. A intenção sempre foi preservar
o metalúrgico. Lula até melhorou o português, mas não foi às escâncaras, como
Vicentinho, que fez os estudos que possibilitaram tal progresso. Se Lula
desejou um dia, não se diga fazer um curso de direito, mas algo mais modesto —
aprender inglês, por exemplo —, não pôde realizar o desejo. Um Lula falando
inglês já não seria Lula. Os colegas do PT seriam os primeiros a reclamar, mas
o resto do Brasil também acharia algo de esquisito nisso.
Vicentinho é, possivelmente, pela inteligência,
argúcia, capacidade de liderança e respeito que inspira, o melhor talento que a
fábrica revelou para a política, depois de Lula. Mas seu curso de direito
mostra que não é Lula. Ou, por outra, é um Lula de última geração. Uma versão revista
e atualizada do original. Ele pode aspirar a um curso superior sem que isso
deixe no ar o cheiro de traição à classe e à causa. Vicentinho já não é
prisioneiro de Vicentinho como Lula foi, e continua sendo, prisioneiro de Lula.